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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Com que corpo eu vou?

"O corpo tem alguém como recheio"

Que corpo você está usando ultimamente? Que corpo está representando você no mercado das trocas imaginárias, que imagem você tem oferecido ao olhar alheio para garantir seu lugar no palco das visibilidades em que se transformou o espaço público no Brasil? Fique atento, pois o corpo que você usa e ostenta vai dizer quem você é. Pode determinar oportunidades de trabalho. Pode significar a chance de uma rápida ascensão social. Acima de tudo, o corpo que você veste, preparado cuidadosamente à custa de muita ginástica e dieta, aperfeiçoado por meio de modernas intervenções cirúrgicas e bioquímicas, o corpo que resume praticamente tudo o que restou do seu ser é a primeira condição para que você seja feliz.

Não porque ele seja, o corpo, a sede pulsante da vida biológica. Não porque possua uma vasta superfície sensível ao prazer do toque -a pele, esse invólucro tenso que protege o trabalho silencioso dos órgãos. Não pela alegria com que experimentamos os apetites, os impulsos, as excitações, a intensa e contínua troca que o corpo efetua com o mundo. O corpo-imagem que você apresenta ao espelho da sociedade vai determinar sua felicidade não por despertar o desejo ou o amor de alguém, mas por constituir o objeto privilegiado do seu amor próprio: a tão propalada auto-estima, a que se reduziram todas as questões subjetivas na cultura do narcisismo.
Nesses termos, o corpo é ao mesmo tempo o principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros -promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel indicador da verdade do sujeito, da qual depende a aceitação e a inclusão social. O corpo é um escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que sobra de nossas suadas economias.

"Nu e Vestido" é um livro recém-editado pela Record, reunindo estudos de dez antropólogos brasileiros e estrangeiros a respeito da cultura do corpo no Rio de Janeiro, hoje. O título, que remete intencionalmente ao famoso estudo de Claude Lévi-Strauss, "O Cru e o Cozido", revela o interesse dos autores pelo corpo como um complexo conjunto de signos classificatórios que indicam as diferenças sociais na cultura do Rio de Janeiro, o que vale também para outras culturas urbanas no Brasil. O grande interesse do livro, a meu ver, são os dados e os depoimentos colhidos pelos antropólogos; quanto às análises empreendidas, tive a impressão de que a preocupação com o rigor acadêmico tolheu a liberdade e a criatividade dos autores, que em geral descrevem exaustivamente os respectivos campos de investigação, mas não arriscam muito na interpretação teórica dos dados.

No entanto a atualidade do objeto e a força das informações colhidas dão o que pensar. Vivemos em uma cultura do corpo. Cada pesquisador escolheu um aspecto dessa cultura: as academias de musculação; o culto à praia; as operações plásticas e enxertos de silicone; o consumo de hormônios e anabolizantes; o cultivo do bronzeado; a moda. O conjunto nos parece monstruoso. Para milhares de brasileiros, incentivados pela publicidade e pela indústria cultural, o sentido da vida reduziu-se à produção de um corpo. A possibilidade de "inventar" um corpo ideal, com a ajuda de técnicos e químicos do ramo, confunde-se com a construção de um destino, de um nome, de uma obra. "Hoje eu sei que posso traçar meu próprio destino", declara um jovem frequentador de academias de musculação, associando o aumento de seu volume muscular à conquista de respeito por si mesmo.

As ciências biomédicas, em defesa de uma (pretensa) saúde, ocuparam o lugar deixado vazio pelos discursos religiosos, filosóficos e morais no mundo contemporâneo. Seu saber orienta uma variadíssima indústria do corpo, ainda em expansão no Brasil, cujos imperativos em nome da vida, da felicidade e da saúde conquistam mercados e mentes. O cuidado de si volta-se para a produção da aparência, segundo a crença já muito difundida de que a qualidade do invólucro muscular, a textura da pele e a cor dos cabelos revelam o grau de sucesso de seus "proprietários". Numa praia carioca, escreve Stéphane Malysse, as pessoas parecem "cobertas por um sobrecorpo, como uma vestimenta muscular usada sob a pele fina e esticada...".

São corpos em permanente produtividade, que trabalham a forma física ao mesmo tempo em que exibem o resultado entre os passantes. São corpos-mensagem, que falam pelos sujeitos. O rapaz "sarado", a loira siliconada, a perua musculosa ostentam seus corpos como se fossem aqueles cartazes que os homens-sanduíche carregam nas ruas do centro da cidade: "Compra-se ouro". "Vendem-se cartões telefônicos." "Belo espécime humano em exposição."

É fato que as sociedades burguesas, desde o século 19, consideraram o corpo como propriedade privada e responsabilidade de cada um. O corpo -mas o corpo vestido, domado pela compostura burguesa e embalado pelo código das roupas- era o primeiro signo que o "self-made man" em ascensão, sem antecedentes nobres, emitia diante do outro a respeito de quem ele "é". A aparência substituiu, com vantagens democráticas, o "sangue". O corpo bem-comportado de até poucas décadas atrás dizia: sou uma pessoa decente, confiável, honrada -e meus negócios vão bem.

O corpo malhado, sarado e siliconado do novo milênio diz: sou um corpo malhado, sarado, siliconado. O circuito se fecha sobre si mesmo. Parece a ética dos "cuidados de si" pesquisada por Michel Foucault, mas não é. O sentido da prática dos cuidados de si a que se dedicavam alguns cidadãos romanos, na Antiguidade, estava diretamente articulado ao papel desses homens na vida pública. Ser capaz de cuidar bem do corpo e da mente era condição para cuidar bem dos assuntos da "polis". No Brasil de hoje, em que o espaço público foi a um só tempo desmantelado e ocupado pela televisão, a produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia, da imagem que tenta apagar a um só tempo o sujeito do desejo e o sujeito da ação política.
A cultura do corpo não é a cultura da saúde, como quer parecer. É a produção de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico. Nesse caldo de cultura insalubre, desenvolvem-se os sintomas sociais da drogadição (incluindo o abuso de hormônios e anabolizantes), da violência e da depressão. Sinais claros de que a vida, fechada diante do espelho, fica perigosamente vazia de sentido.

Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.

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