Não porque ele seja, o corpo, a sede pulsante da vida biológica. Não porque possua uma vasta superfície sensível ao prazer do toque -a pele, esse invólucro tenso que protege o trabalho silencioso dos órgãos. Não pela alegria com que experimentamos os apetites, os impulsos, as excitações, a intensa e contínua troca que o corpo efetua com o mundo. O corpo-imagem que você apresenta ao espelho da sociedade vai determinar sua felicidade não por despertar o desejo ou o amor de alguém, mas por constituir o objeto privilegiado do seu amor próprio: a tão propalada auto-estima, a que se reduziram todas as questões subjetivas na cultura do narcisismo.
Nesses termos, o corpo é ao mesmo tempo o principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros -promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel indicador da verdade do sujeito, da qual depende a aceitação e a inclusão social. O corpo é um escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que sobra de nossas suadas economias.
"Nu e Vestido" é um livro recém-editado pela Record, reunindo estudos de dez antropólogos brasileiros e estrangeiros a respeito da cultura do corpo no Rio de Janeiro, hoje. O título, que remete intencionalmente ao famoso estudo de Claude Lévi-Strauss, "O Cru e o Cozido", revela o interesse dos autores pelo corpo como um complexo conjunto de signos classificatórios que indicam as diferenças sociais na cultura do Rio de Janeiro, o que vale também para outras culturas urbanas no Brasil. O grande interesse do livro, a meu ver, são os dados e os depoimentos colhidos pelos antropólogos; quanto às análises empreendidas, tive a impressão de que a preocupação com o rigor acadêmico tolheu a liberdade e a criatividade dos autores, que em geral descrevem exaustivamente os respectivos campos de investigação, mas não arriscam muito na interpretação teórica dos dados.
No entanto a atualidade do objeto e a força das informações colhidas dão o que pensar. Vivemos em uma cultura do corpo. Cada pesquisador escolheu um aspecto dessa cultura: as academias de musculação; o culto à praia; as operações plásticas e enxertos de silicone; o consumo de hormônios e anabolizantes; o cultivo do bronzeado; a moda. O conjunto nos parece monstruoso. Para milhares de brasileiros, incentivados pela publicidade e pela indústria cultural, o sentido da vida reduziu-se à produção de um corpo. A possibilidade de "inventar" um corpo ideal, com a ajuda de técnicos e químicos do ramo, confunde-se com a construção de um destino, de um nome, de uma obra. "Hoje eu sei que posso traçar meu próprio destino", declara um jovem frequentador de academias de musculação, associando o aumento de seu volume muscular à conquista de respeito por si mesmo.
As ciências biomédicas, em defesa de uma (pretensa) saúde, ocuparam o lugar deixado vazio pelos discursos religiosos, filosóficos e morais no mundo contemporâneo. Seu saber orienta uma variadíssima indústria do corpo, ainda em expansão no Brasil, cujos imperativos em nome da vida, da felicidade e da saúde conquistam mercados e mentes. O cuidado de si volta-se para a produção da aparência, segundo a crença já muito difundida de que a qualidade do invólucro muscular, a textura da pele e a cor dos cabelos revelam o grau de sucesso de seus "proprietários". Numa praia carioca, escreve Stéphane Malysse, as pessoas parecem "cobertas por um sobrecorpo, como uma vestimenta muscular usada sob a pele fina e esticada...".
São corpos em permanente produtividade, que trabalham a forma física ao mesmo tempo em que exibem o resultado entre os passantes. São corpos-mensagem, que falam pelos sujeitos. O rapaz "sarado", a loira siliconada, a perua musculosa ostentam seus corpos como se fossem aqueles cartazes que os homens-sanduíche carregam nas ruas do centro da cidade: "Compra-se ouro". "Vendem-se cartões telefônicos." "Belo espécime humano em exposição."
É fato que as sociedades burguesas, desde o século 19, consideraram o corpo como propriedade privada e responsabilidade de cada um. O corpo -mas o corpo vestido, domado pela compostura burguesa e embalado pelo código das roupas- era o primeiro signo que o "self-made man" em ascensão, sem antecedentes nobres, emitia diante do outro a respeito de quem ele "é". A aparência substituiu, com vantagens democráticas, o "sangue". O corpo bem-comportado de até poucas décadas atrás dizia: sou uma pessoa decente, confiável, honrada -e meus negócios vão bem.
A cultura do corpo não é a cultura da saúde, como quer parecer. É a produção de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico. Nesse caldo de cultura insalubre, desenvolvem-se os sintomas sociais da drogadição (incluindo o abuso de hormônios e anabolizantes), da violência e da depressão. Sinais claros de que a vida, fechada diante do espelho, fica perigosamente vazia de sentido.
Adoro esse texto.
ResponderExcluirEle é brilhante!!!